#15 Artista em tempo livre
Vejam só, aprendi que tenho autoridade sobre meu próprio tempo
Esses dias eu tive a conversa mais fofa do mundo com a
na DM do instagram. Ela veio me falar que ama a identidade visual da Na Telha, e minha arte em geral, e queria saber se eu trabalho com isso. Eu disse para ela que acho a estética dela incrível também, é uma das minha inspirações por aqui, e que não, eu não trabalho com isso.Por mais que as pessoas ao meu redor tentem e tentem e tentem me convencer a monetizar algo que eles sentem que eu sou verdadeiramente boa em: não, eu não trabalho com isso.
Acontece que alguns anos atrás eu estava tão entediada com o instagram, que uma ideia me surgiu: eu decidi publicar minhas fotos pessoais como colagens artísticas. Assim sem muita intenção, simplesmente porque me parecia uma ideia infinitamente mais divertida do que colocar mais do mesmo naquele feed. Eu me sentia tão sem inspiração com a vida, eu queria me divertir com as coisas de novo, então quando pensei em algo que me soou divertido, eu nem pensei duas vezes. Não importava se os outros iam aprovar, ou se eu sabia o que estava fazendo. Eu comecei e não parei mais.
Até hoje a maioria do que eu faço por lá é 1000% voltado para mim, no sentido que eu sei que ninguém está 100% entendendo o que está acontecendo por ali na maior parte do tempo. Ninguém é capaz de intuir porque eu fiz uma colagem escrita not sure, e eu com certeza não aprofundei o assunto. Quase nada lá tem uma explicação, ou convida os demais a “entrarem no meu mundo”. De certa forma, o meu mundo está lá exposto, mas do mesmo jeito que a lua está exposta em um observatório. Os observatórios só existem porque achamos os astros bonitos e interessantes, e o meu instagram só existe porque eu queria achar a minha vida mais bonita e interessante.
E acontece que no fim a minha arte tem um propósito muito claro para mim que claramente se perde com as outras pessoas. Por eu estar cronicamente publicando no instagram, eu acho que todo mundo interpreta que eu esteja a procura de ganhar algo com isso, seja atenção (likes), ou dinheiro.
Quando eu mostrei as mensagens iniciais da annavoid para uma amiga, dizendo “olha que fofa!”, eu fiquei completamente surpresa quando a minha amiga concordou e disse “fala para ela que você conhece várias designers”. Eu fiquei surpresa porque eu esperava que ela usasse a deixa como todo mundo sempre parece usar, dizendo uma variação de “está vendo! As pessoas tem interesse no que você faz, você devia trabalhar com isso!”. Eu esqueci por um segundo que eu já desabafei umas trinta mil vezes com minhas amigas sobre como eu não quero trabalhar com isso. E por aquele um segundo, eu admito que fiquei decepcionada. Querendo ou não, “você devia trabalhar com isso!” se tornou um elogio contemporâneo, e eu amo ser elogiada.
"E sabe o que é mais doido? Essa mentalidade acaba sufocando a própria criatividade que estava sendo elogiada. Porque quando você transforma um passatempo em trabalho, as regras do jogo mudam. De repente, você não está mais fazendo aquilo pelo puro prazer de fazer. Agora tem expectativas, demandas, prazos. O espaço pra experimentação, pra errar, pra simplesmente brincar com uma ideia… esse espaço diminui drasticamente. O famoso 'dance como se ninguém estivesse vendo'."
- Que legal isso que você fez! Devia botar para vender…, crisdias.
E foi assim que eu percebi que eu estava novamente esquecendo que não queria ganhar dinheiro com as minhas colagens. E que tenho que ser muito intencional na forma como eu me recuso a cair na armadilha capitalista do mundo de hoje. Tem muitas coisas em que eu sou, ou posso me tornar, boa. Não há necessidade nenhuma de estragar um hobby perfeitamente singelo com ideias malucas de monetização.
As massas gritam desesperadas: “auto sabotagem!”. Eu poderia estar ganhando dinheiro, e não estou, e isso é o ápice da auto sabotagem hoje em dia. Ou é isso que as pessoas se deixaram convencer. Mas eu acho que a pior auto sabotagem que cometemos hoje é a de pensar que tempo é dinheiro. De permitir que nosso tempo seja dinheiro.
Eu já escrevi aqui sobre meu sonho de ser uma velhinha de 80 anos. Eu tenho que constantemente lembrar que meu tempo é para a construção dos meus sonhos, das coisas que eu desejo para mim mesma e o mundo, antes de qualquer outra coisa. Meu tempo livre, então, é para me manter sã e saudável em todos os âmbitos para que eu continue crescendo na vida, e eu preciso que esse tempo seja recheado de coisas que me inspirem. Minha profissão é a única coisa que envolve gerar dinheiro, o resto não.
O pulo do gato é saber reconhecer que habilidades queremos exercer profissionalmente, e que habilidades nos servem melhor sendo apenas hobbies. É saber reconhecer que não somos escassos: não há necessidade de se agarrar desesperadamente a uma coisa que exercemos bem, e tornar isso a nossa vida. Existem muitas coisas que somos capazes de exercer bem.
A própria Na Telha, por exemplo, cai dentro do que eu desejo profissionalmente, então eventualmente eu espero saber gerar dinheiro com isso. As minhas colagens não cabem dentro do que desejo profissionalmente, então eu acho que seria besta da minha parte gastar meu tempo tentando ser profissional de uma área que não se sustentaria comigo por muito tempo. E eu tenho que lembrar disso o tempo todo.
Tempo não é dinheiro, tempo é precioso. E eu acho que deveríamos aprender a ser mutualmente egoístas e altruístas com ele. O nosso tempo é, por mais incrível que pareça, nosso.
Eu descaradamente perco meu tempo com muitas coisas, sem dó nem piedade. Esse é meu lado egoísta atuando, me dizendo que eu tenho que focar em coisas pelo simples prazer que elas me trazem, ganhar aquela dopamina que me mantém feliz. Nesse sentido, eu amo ser egoísta, acho que todo mundo deveria ser. Eu faço arte, converso com amigos, faço chás, tiro fotos, caminho para observar a natureza, leio, jogo RPG, saio a noite, faço pesquisas, invento de criar uma horta em casa... as opções parecem se tornar cada vez mais infinitas. Eu sou muito boa em gastar meu tempo egoisticamente.
É como Bell Hooks bem disse, “Sou uma garota que sonha com o ócio, sempre sonhei. O devaneio sempre foi necessário para minha existência.”1
Por outro lado, eu desejo saber atuar na sociedade. É assim que eu chamo a minha profissão, de “atuação social”, para me lembrar que eu quero que seja algo voltado aos outros antes de tudo. Isso não quer dizer que eu queira trabalhar em ONGs e afins, embora já pensei muito sobre isso. O que eu quero é que meus trabalhos atuais, como professora de inglês e escritora, sejam coisas que agreguem de verdade na vida dos outros. Eu não quero ensinar inglês só porque sim, eu quero que meus alunos tenham uma relação gostosa com a língua, que eles tenham acesso a várias coisas divertidas e interessantes que eu cuidadosamente seleciono pensando “isso aqui vai ensinar mais que só inglês para eles”. Inglês é uma língua, as possibilidades são infinitas. E eu não quero escrever só porque sim, eu quero escrever coisas que importem tanto para mim quanto para os outros.
A sociedade atual vende a ideia de trabalho de forma muito bruta, eu acho. É puramente o ganha pão, o faz-dinheiro que todo mundo precisa. E precisamos mesmo. Mas do mesmo jeito que tempo é dinheiro, trabalho é dinheiro. Não é atoa que o senso de comunidade anda sumindo da sociedade em larga escala2.
Então é por todas essas razões que eu me declaro artista em tempo livre. Eu levo meu hobby a sério, gasto muito tempo com ele, e não ganho dinheiro ou “fama” alguma com isso. Mas eu me divirto, descanso, e ganho inspiração e interações incríveis com amigos, colegas e desconhecidos. Os meus hobbies, em geral, me proporcionam coisas maravilhosas que eu não consigo nem descrever em palavras, quase todas no campo mental e sentimental, e são extremamente importantes na minha vida.
O meu amor incondicional pelos meus hobbies e o amor incondicional da minha família por mim, são as duas coisas que carregam a minha sanidade nos ombros.
Te convido sinceramente a levar seus hobbies mais a sério, e trazer mais intenção para o seu tempo livre também.
Até a próxima vez que der Na Telha,
Cici.
P.s.: meu nome, Yaci, significa lua em tupi, não lembro se já comentei por aqui. Por isso a comparação com a lua no observatório é, modéstia a parte, especialmente boa.
P.s2: a Diovanna, do anna’s void, é uma fofa e fez a minha SEMANA com sua mensagem e nossa subsequente conversa, que ainda está ocorrendo. Eu amo as artes de capa dela, e temos uma amor em comum por verde e rosa, e colagens. Mas ela é bem mais engraçada nos seus textos, uma habilidade que me falta.
Aqui Na Telha escrevo sobre meus pensamentos da meia-noite, sobre as línguas do mundo, e falo da vida bem vivida que tento ter. Quando dá Na Telha. No Instagram, compartilho minhas colagens em horários estranhos.
Artistas Mulheres: o processo criativo, Bell Hooks. (1995)
Recentemente li um texto sobre terceiros espaços: Third Space? You Can't Handle a Third Space. Caso você não esteja familiar com o conceito, e não leia em inglês, pode ver mais sobre nesse texto: O declínio do terceiro lugar.
normalmente eu sou tímida demais pra comentar nos textos daqui, mas eu preciso dizer que esse edição fez o meu dia! eu frequentemente me sinto culpada por possuir hobbies "não produtivos" e sinto que estou perdendo um tempo essencial (mas pra que?) e isso me deixa muito ansiosa. ultimamente eu andei pensando muito em fazer minhas próprias colagens, mas caía naquela desculpa da "falta de tempo", e seu texto foi essencial pra eu pensar melhor sobre todas essas coisas que me deixam preocupada. eu amo amo a sua newsletter e a sua identidade visual. você é uma inspiração pra mim!
quando eu li uma vez por aí que hobby simplesmente é um nome adulto que a gente deu pra *brincar* tudo fez sentido, a gente só quer brincar sem o capitalismo se infiltrar no meio 😭