#14 Criatividade no Ciberespaço Sideral - parte 2
Entendendo a criatividade no universo digital
Essa é a parte 2 sobre Criatividade no Ciberespaço Sideral! Leia a parte 1, "Entendendo o Ciberespaço”, aqui:
Quando falamos de falácias na nossa compreensão do que é “criatividade”, acho que a número um é a fantasia de que criatividade é dom. Como se apenas alguns seletos fossem capazes de ser criativos. A número dois é que ela pertence aos artistas.
Criatividade é uma prática humana. Eu digo prática porque quanto mais exercemos, melhores ficamos. Você pode usar a criatividade em qualquer âmbito. Uma colher é fruto da criatividade humana, Excel também e, por incrível que pareça, limões também.
"Isso já aconteceu com você, onde você pensou em [uma resposta] tipo, quatro horas após o evento? [...] Isso é um bom sinal, porque significa que você tem instinto cômico. E através da prática e da repetição, você pode reduzir o tempo que leva para ter aquele ‘momento a-ha’, de quatro horas depois para apenas três horas depois, para apenas dois a dez minutos para, então, acontecer no momento. Porque uma reflexão sobre o passado leva à ação no futuro."
- The Skill of Humor, Andrew Tarvin. Tradução livre.
"[...] ter conhecimentos além do seu próprio ramo é realmente útil [...]. Sempre pensei que uma das razões pelas quais os anos 60 foram tão interessantes é que ninguém era cientista da computação naquela época, todos que entraram na área chegaram com muitos conhecimentos e interesses diversos. Então eles tentaram descobrir o que eram os computadores, e as únicas analogias – o lugar de onde eles tinham que tirar as analogias – eram de outras áreas, então conseguimos algumas ideias extremamente interessantes [dessa situação]."
- Arthur Koestler on Creativity and Outlaw Thoughts (Vannevar Bush symposium, 1995), Alan Kay. Tradução livre.
“Aprecie a mundanidade” disse Alan Kay, “afinal, o próprio lápis é alta tecnologia”. Essa foi uma das frases que Andy Hertzfeld achou genial na fala de Alan, no seminário sobre criatividade “Creative Think” que ocorreu em 1982. Andy Hertzfeld foi um dos membros pilares da equipe que montou o primeiro Macintosh (Apple), e em seu site ele escreveu:
O discurso de Alan foi revelador, e talvez a palestra mais inspiradora a que já assisti. Fiquei cada vez mais animado quando ele fez um comentário brilhante e perspicaz após o outro, e peguei meu caderno para anotar o máximo que pudesse. Alan estava articulando os valores por trás do trabalho que eu fazia, mesmo sem saber, de uma forma que realmente ressoou em mim. Depois […] transcrevi em uma única página e copiei para distribuir ao restante da equipe.
- Creative Think, Andy Hertzfeld. Tradução livre.
O fato que “aprecie a mundanidade: afinal, o próprio lápis é alta tecnologia” foi uma das frases que inspirou a equipe de desenvolvedores da Apple me soa ao mesmo tempo hilário, e inspirador por si só.
★ Entendendo a criatividade no universo digital #1: bissociação e Alan Kay
Em 1964, Arthur Koestler publicou um livro de 751 páginas sobre o Ato da Criação. Eu descobri sobre isso não porque estava pesquisando sobre criatividade, mas porque estava pesquisando sobre computadores. O que, claro, quer dizer que eu encontrei o conteúdo certo sobre criatividade, porque O Ato da Criação inspirou Alan Kay, que por sua vez inspirou Andy Hertzfeld, e entender sobre tudo isso é entender sobre a própria história criativa do universo digital.
Alan Kay é responsável por muitas coisas do que vemos hoje em dia. Por exemplo, é a ele que é associada a “metáfora do escritório”, que é a forma como toda e qualquer interface de computador funciona desde então: a entrada é um “desktop”, você tem a lixeira, as coisas dispostas na mesa (arquivos/pastas, papel/editor de texto, calculadora, bloco de notas), tudo é aberto em “janelas”, etc. Ted Nelson, que mencionei antes, é um grande hater dessa ideia. No site da Xanadu Universe, está escrito:
"Os documentos electrónicos convencionais foram concebidos na década de 1970 por pensadores convencionais bem financiados da Xerox PARC, que perguntaram: "Como podemos imitar o papel?" O resultado é o documento eletrônico atual – formato Microsoft Word e formato de impressão PDF. Eles imitam o papel e enfatizam a aparência e as fontes. Mas muito antes, em 1960, o projeto Xanadu começou com uma ideia completamente diferente. Como as telas interativas estão chegando (quem mais sabia?), fizemos uma pergunta diferente: Como podemos MELHORAR o papel? Previmos uma nova literatura em tela de documentos paralelos e interligados."
- THE XANADU PARALLEL UNIVERSE, Theodor Holm Nelson. Tradução livre.
Pessoalmente, eu acho que a visão de Ted e do projeto Xanadu mais interessante, mas Alan estava correto. Ele queria que o computador fosse acessível a todos, e trabalhava majoritariamente com crianças tentando entender como usar computadores de forma que elas tivessem autonomia com aquilo e pudessem aprender. Ele concebeu o primeiro protótipo de laptop justamente pensando nisso.
Por outro lado, agora estamos em pleno 2025 e tudo continua exatamente igual, e ninguém quer fazer diferente porque, provavelmente, não querem perder os clientes que já estão acostumados com isso tudo. Então estamos presos na metáfora do escritório, novamente padronizados.
Mas vamos retornar ao Ato da Criação. A principal ideia de Koestler neste livro é a “bissociação”: a ideia de que o ato criativo sempre opera em dois planos. Ou seja, há a necessidade de associar (no mínimo) duas ideias ou objetos, que não se relacionam entre si, para que a criação ocorra.

[...] nossas mentes são, de certa forma, restritas a pensar dentro de um contexto ou dentro de sistemas de crenças, e nossos padrões de pensamento meio que seguem presos nesse “plano rosa” específico. De vez em quando, temos pequenos pensamentos “fora da lei”, que são considerados como mentiras pelo “plano rosa”, e eles geralmente acabam sendo suprimidos e deixados de lado. Mas de vez em quando, quando você está tomando um banho, ou correndo, ou algo assim, você está relaxado o suficiente para deixar um desses pensamentos “fora da lei” florescer um pouco, e às vezes o que você descobre é que aquela pequena “ideia rosa”, quando expandida para o contexto azul, é muito mais interessante do que era no contexto rosa.
Então a ideia aqui é que ideias fantásticas frequentemente se escondem atrás de ideias boas.
- Arthur Koestler on Creativity and Outlaw Thoughts (Vannevar Bush symposium, 1995), Alan Kay. Editado. Tradução livre.
Basicamente, a ideia é que seria impossível uma ideia criativa ocorrer sem que dois planos, dois contextos, se colidam. É por isso que eu disse que os algoritmos inegavelmente vão contra o verdadeiro princípio da criatividade: quando eles te incentivam a “nichar” cada vez mais seus conhecimentos, gostos e contatos, eles vão tirando do seu caminho os contextos — pontos de vista — diversos que te trariam a possibilidade de criar algo novo e autêntico. Se você não for atrás da diversidade, seja no digital ou fora, os algoritmos te mantem em um loop de coisas que revolvem em si. Como uma sala de espelhos.
E eu sei que mesmo imersos nas redes, ainda somos capazes de criar. Quer dizer, tem infinitas pessoas criando conteúdo online, e parece que surge uma nova tendência a cada segundo, certo? Eu não posso dizer que essas coisas não são frutos da criação humana, porque elas são. Mas são do mesmo jeito que essas capas de livros de romance recentes são:
O quer dizer que há sim muita criação, mas muita pouca criatividade no senso mais popular da palavra.
Parece que ultimamente estamos rodeados de um mar de “ideias boas”, verdadeiramente sendo soterrados nelas ao ponto que lentamente elas parecem se tornar tudo a mesma coisa.
★ Entendendo a criatividade no universo digital #2: mas e as ideias fantásticas?
Alguns anos atrás, ao me deparar com ideias fantásticas em um podcast, eu percebi que eu honestamente achava que as grandes ideias, as ideias fantásticas, eram coisa do passado. Que ninguém mais iria ter uma ideia genial que faria o próprio mundo tremer na base, sabe? Que nem a Internet.
O que é um pensamento meio besta (e dramático), porque grandes ideias certamente não precisam tremer a base do mundo para serem fantásticas: elas só precisam tremer a base de algum indivíduo nessa Terra. As ideias daquele podcast tremiam a minha base pelo simples fato de existirem, mesmo que a grande maioria não tivesse nada a ver comigo pessoalmente.
O universo digital é repleto de ideias fantásticas. Apesar dos apesares, ainda é possível encontrar coisas incríveis no próprio Instagram. E é claro que é, porque a Meta ainda detém grande parte da população mundial dentro de seus muros, e pessoas criativas — aqui eu me refiro a quem quer que atue com criatividade — prosperam em todos os cantos do mundo, até os mais inóspitos.
Na verdade, é exatamente com criatividade que somos capazes de tirar o máximo de proveito de qualquer coisa na vida, incluindo ter uma ótima relação com a Web.
E é claro que a razão pela qual é importante se ter uma educação, é simplesmente porque não tem como ter algum “contexto azul” se não tiver outros tipos de conhecimento com o qual pensar. Portanto, a engenharia é provavelmente um dos campos mais difíceis de ser criativo, só porque se trata de otimização. Você não otimiza sem estar firmemente ancorado no contexto em que se está. Então, o que estamos falando aqui é algo que não é sobre otimização, mas sim uma espécie de rotação do ponto de vista.
Veja aqui a transcrição [editada] e tradução livre da fala de Alan Kay.
Nós adquirimos “contexto azul” através de variedade e diversidade naquilo que consumimos. E isso quer dizer que não dá para usar o digital hoje em dia se não for com intenção. Só dá para ser verdadeiramente aleatório — sair dos algoritmos — hoje em dia se você tiver a intenção de ser aleatório. Procure outros pontos de vistas fora do seu e daqueles que são como você.
Uma ótima maneira de ir atrás de contexto azul no digital é através desse site.
★ Alguns exemplos de criatividade e autenticidade
"Sou uma garota que sonha com o ócio, sempre sonhei. O devaneio sempre foi necessário para minha existência. Preciso de longas horas esticada, vestindo sedas, cetins e caxemira, sozinha comigo mesma, acolhida pela beleza à minha volta. [...] Quando me visto assim, estou pronta para a incrível tarefa de me demorar, passar um tempo ininterrupto com meus pensamentos, sonhos e anseios intensos, muitas vezes do tipo que, como o amor não correspondido, não são satisfeitos. Ultimamente, no meio dessa solidão, me pego escrevendo, as palavras girando juntas na minha cabeça para que eu não perca ou esqueça as revelações, os momentos afiados de clareza surgidos durante esse tempo tranquilo, que vêm à tona em meio aos odores luxuriosos de sabonete importado de verbena ou de um perfume cítrico, um livro em minha mão."
- Artistas Mulheres: o processo criativo, Bell Hooks.(1995)
Na capa dessa news, coloquei 3 exemplos perfeitos de criatividade no universo digital, ou pelo menos que eu descobri e acesso via universo digital.
★ Doechii e sua mixtape em 30 dias
Doechii acabou de se tornar a terceira mulher a ganhar o Grammy de “Melhor Álbum de Rap” pelo seu mixtape Alligator Bites Never Heal, que ela criou em 30 dias.
“Eu coloco um cronômetro, uma hora. O que quer que você consiga nessa uma hora, é isso que você vai ter. E então você tem que seguir em frente. [...] Eu tenho o direito de ser ruim em algo quando eu estou apenas começando! [...] Você tem o direito de ser vulnerável. Você tem o direito de ser brega. O que quer que seja. Eu tenho o direito de ser quem eu sou neste momento, e então devo seguir em frente.”
- Doechii em uma entrevista, tradução livre
Mas ela não chegou aí do nada: antes dessa mixtape, ela passou por um grande momento pessoal de bloqueio criativo, e teve que se tirar dessa. Seu canal do YouTube inclusive tem vídeos dessa jornada com o The Artist Way.
★ Revista FRUiTS
Nos fim dos anos 90, uma revista japonesa chamada FRUiTS começou suas publicações de fotografias da moda de rua dos jovens em Tóquio. Cerca de 20 anos depois, em 2017, seu fundador e fotógrafo Shoichi Aoki decidiu fechar as atividades porque "não há mais crianças legais para fotografar".
Embora não esteja mais em circulação, FRUiTS ainda é usada como fonte de inspiração para looks autênticos, majoritariamente através do Pinterest.
★ Paul Octavious no Instagram
Pessoalmente, um dos meus artistas favoritos do momento, que eu descobri pelo Instagram. Eu amo como ele usa formas geométricas, principalmente o quadriculado, com “imagens comuns”. Fica criativo e lindo. Esse é um print, ele faz reels geralmente:
★ Criatividade no Ciberespaço Sideral
Eu vou ser bem sincera aqui e dizer que eu sinto que de certa forma nem fiz cócegas no que eu verdadeiramente queria falar, mas esse texto está novamente chegando no limite de tamanho para o email. Cada coisa que eu li ou vi foi mudando mais e mais a minha perspectiva do que é estar no digital, então espero que tudo isso instigue sua criatividade, assim como instigou a minha.
Até a próxima vez que der Na Telha,
Cici.
[Acesse aqui a lista completa de fontes e links extras]
Quando sai a parte 3? Hahahahaha adorei demais os dois textos e me levou pra um lugar tão distante do que tenho habitado ao mesmo tempo que se conecta diretamente com muita coisa que tenho refletido sobre a internet. Obrigada!
eu simplesmente estou obcecada e apaixonada por toda essa sua pesquisa.
esse seus textos me renderam muitas conversas legais e insights. Obrigada e parabéns.