a linguisticamente falando é o quadro da Na Telha em que uma vez por mês descobrimos juntos coisas interessantes que nossas línguas nos contam.
esses dias eu estava tentando lembrar como eu poderia dizer revamp em português. isso acontece muito comigo, momentos em que quero dizer algo e só consigo lembrar em outra língua. então para tentar me ajudar a pensar em um bom correspondente em português, eu comecei a analisar mentalmente a palavra, o que ela quer dizer?
então estava ali, quebrando revamp em [re] e [vamp], quando uma nova pergunta me surgiu. será que as palavras vamp e vampire tem alguma ligação entre elas? talvez tenham uma mesma origem? e ao mesmo tempo que a questão surgiu, eu a abandonei. provavelmente não.
mas o que vampire quer dizer? eu sempre assumi que vampiro fosse simplesmente uma palavra derivada de vampire, mas quais as chances de isso ser verdade? elas podem simplesmente ter uma origem em comum, ambas as línguas são europeias e o vampiro é uma criatura mitológica relativamente antiga.
e foi assim que eu completamente esqueci da minha questão original. mas fiquem com a resposta mesmo assim: revamp é renovar. e vamp não tem nada a ver com vampire, embora a novela talvez te tenha feito acreditar na minha suposição inicial.
talvez hoje em dia pareça loucura para você, mas séculos e séculos atrás vampiros costumavam ser criaturas que as pessoas acreditavam ser real, e que as aterrorizavam.
tudo começou com uma ideia maluca que tiveram: e se a gente enterrasse os corpos humanos, ao invés de queimá-los? parece mais correto.
“uma condição prévia fundamental para o surgimento da crença nos vampiros foi a substituição gradual da prática da cremação e da pira funerária pelo sepultamento […]. Desse ponto em diante, a condição dos cadáveres incendiou a imaginação dos vivos.” [The Vampire: Origins of a European Myth, Thomas M. Bohn. tradução livre.]
claro, o ato de enterrar é praticado pela humanidade à milênios, podendo ser datado lá pela época da pré-história. mas o sepultamento de corpos se tornou a prática comum com a instituição da Igreja, que por sua vez herdou o costume do povo hebreu.
o primeiro caso que se tem documentado, de fato, de vampirismo é relativamente recente. em 1725, em um vilarejo chamado Kisolova (hoje em dia Kisiljevo, na Sérvia), nove pessoas morreram em questão de dois dias, e todas reportaram que um certo Petar Blagojevic (que havia morrido 3 meses antes) tinha vindo em sonho lhes estrangular.
“o que temia-se encontrar em tais casos suspeitos era um cadáver não decomposto, apresentando transformações na pele, cabelos e unhas que sugeririam a continuidade do processo de crescimento natural. tais corpos eram referidos pela população local como ‘vampyri’.” [The Vampire: Origins of a European Myth, Thomas M. Bohn. tradução livre.]
devido a comoção geral, exigiram que o caixão de Petar fosse aberto, e nele encontram “sangue fresco” saindo de sua boca. Petar Blagojevic foi então declarado um vampiro, seu coração foi perfurado com uma estaca e seu corpo queimado na pira.
parabéns Petar, você foi premiado como o primeiro vampiro da humanidade! tenho certeza que você amou o título e o subsequente tratamento de spa.
mas a história de Petar Blagojevic foi só a primeira instância em que um vampiro surgiu na mídia (neste caso, no jornal austríaco Wienerisches Diarium). em 1819, John William Polidori publicou a primeira narrativa em prosa sobre vampiros, o conto intitulado O Vampiro. a partir daí, no século 19, os vampiros começam a sair do campo de “monstro do vilarejo” e passam a se tornar mais como os conhecemos hoje em dia, com histórias icônicas como Carmilla (1872) e Drácula (1897). Algo mais “lordes elegantes e donzelas lindas”.
é certo, no entanto, que a crença em vampiros vem de muito antes de aparecer na mídia em larga escala. em 1573, Tsar Ivan IV, conhecido como O Terrível, usou o termo upir em uma missiva ao Mosteiro Kirillo-Belosersky, incluindo-o em uma lista com outros palavrões como ‘tolo (fool)’ e ‘espírito malvado (evil spirit)'.
os vampiros surgem mais comumente nas antigas histórias, mitos e superstições eslavas, onde se era muito comum que vampiros, bruxas e lobisomens fossem meio que considerados “tudo a mesma coisa”. ou seja, muitos dos termos antigos para vampiro, também são termos que designavam uma bruxa ou um lobisomem, já que todos eram considerados “espíritos ruins”, e em muitos casos designados como “pesadelos”.
temos por exemplo mora (ou zmora), que seria literalmente uma “bruxa sugadora de sangue”. a palavra mora aparece em diversas línguas eslavas, como polonês (zmora, mora, mara), tcheco (můra, morá), sórbio (murava, morava), búlgaro (morá, morava), entre outros.
“A mora é uma jovem cujo espírito maligno aflige homens, mulheres e crianças à noite, os esmagando e sugando seu sangue. Velhas mulheres, em particular, eram frequentemente consideradas bruxas, e tanto as pessoas como os animais sofriam como resultado de sua magia negra. No momento em que a alma de uma bruxa ou de uma mora, dada ao diabo, deixava o corpo, testemunhos orais mostraram que uma espécie de rigor mortis se instalaria. nestes casos, a troca das posições da cabeça e dos pés garantiria que a alma impura não poderia mais voltar, e que as forças demoníacas não poderiam mais emergir.” [The Vampire: Origins of a European Myth, Thomas M. Bohn. tradução livre.]
ou então o upýr, que por sua vez é um “lobisomem sugador de sangue”.
“’o […] nome é dado na Pequena Rússia (e nas terras eslavas do sul) à um lobisomem de conto de fadas que voa como um sugador de sangue após a morte, roendo pessoas’. É interessante que Votjaks (Udmurts), que vivem ao lado dos russos na região central da bacia de Volga, reconhecem o ubir como sugador do sangue dos vivos” [The Word "vampire": Its Slavonic Form and Origin, tradução livre.]
e é de upýr (ou upir, como colocado por Tsar Ivan IV), que encontramos a origem mais provável da palavra “vampiro” em si. seja upir, upyr, upiór, upýr, são muitas as variantes para a palavra que parece ter surgido com os antigos eslavos. upíři (literalmente “vampiros (pl.)” em tcheco atual) é a versão mais antiga encontrada da palavra, que aparece pela primeira vez em uso em um manuscrito de 1047, mas seu sentido em nada tem a ver com vampiros: era uma nome próprio, Upirĭ Lixyi.
foi a partir da sérvia, com o famoso caso de Petar Blagojevic e um segundo caso de vampirismo em 1731 (em outro vilarejo), que a palavra vampir se espalhou para o resto da europa, se tornando o que hoje vemos na nossa língua como “vampiro”.
agora, em questão de etimologia e sentido da palavra, o mundo da ciência parece simplesmente se encontrar em completo caos sobre que palavras podem ou não ser a origem e raiz de vampiro, muitas opiniões divergem. o artigo que citei aqui por último, The Word "vampire": Its Slavonic Form and Origin, de Brian Cooper (2005), faz um ótimo trabalho de trazer todas as teorias até então discutidas e negá-las com fatos comuns, embora o artigo em si seja tão cheio de citações e símbolos que eu tenha me perdido em diversos momentos. pessoalmente, no entanto, minha parte favorita é quando ele diz que não faz sentido nenhum vampire derivar de uma palavra para “morcego”, já que no Mundo Antigo não havia nenhuma espécie de morcegos-vampiros, cujas três espécies conhecidas vem do Novo Mundo (américa central e do sul).
no meio de tudo, ele faz um questionamento muito bom: qual é a essência dos vampiros? e a resposta é simples: a essência de todo mito de vampiro é que eles são seres impuros. com essa deixa, acho que vocês vão gostar da forma como ele termina seu (altamente confuso) artigo:
“de qualquer forma, se a etimologia aqui proposta for válida, pode não ser inteiramente deslocado que […] deveria ser dos ancestrais dos romenos, cujo dracul 'o diabo' (russo nečistyj) tem grande importância nas vulgarizações modernas da superstição vampírica na ficção e no cinema, que os eslavos tomaram emprestado *(v)p-pyr/pir- (< impur- [**empur-*], como **împur-/umpir-?) antes de passar como vampiro para o oeste da europa e o resto do mundo.” [The Word "vampire": Its Slavonic Form and Origin. tradução livre.]
ai está o drácula, o querido diabo da literatura gótica.
tenho apenas uma última informação muito legal, já que não quero ocupar muito o tempo de vocês. o nosso termo “vampiro” aparece pela primeira vez com Davanzati, na Dissertazione sopra i vampiri, em 1789.
pura menção honrosa para a criatura que dominou o imaginário das américas nos anos 90. seu nome é bem autoexplicativo, já que as lendas surgiram em Porto Rico com as mortes misteriosas de gado e outros animais domesticados para o abate (como, digamos, as cabras). acho que qualquer um que tenha assistido crepúsculo associa chupa-cabras com vampiros hoje em dia, e embora eles sejam mesmo criaturas que sugam o sangue, as semelhanças param por ai.
deixo vocês por aqui.
até a próxima vez que der Na Telha,
cici.
FONTES SOBRE O MITO
Como um mal entendido deu origem ao popular mito dos vampiros, da BBC News
O vampiro ao longo do tempo, da Rádio UFG
The Vampire: Origins of a European Myth (2022), de Thomas M. Bohn (publicado originalmente em alemão, em 2019)
FONTES SOBRE A PALAVRA “VAMPIRO”
The History of the Word "Vampire", de Katharina M. Wilson
The Word "vampire": Its Slavonic Form and Origin, de Brian Cooper
OUTRAS FONTES
A verdade científica por trás da lenda do chupa-cabra, de BBC News
O que é sepultamento: Saiba qual é a sua origem, de Facilita
Maravilhoso!!!
pesquisa sensacional, nunca tinha visto nada sobre